C R Í T I C A



No silêncio do Abismo
Homero Gomes


Abismo Poente de Whisner Fraga exige silêncio absoluto



Capa

atei o cafezinho frio numa talagada só, empolgado com a música Born to Raise Hell, do Mötorhead, e com os dedos tamborilando a mesa na espera deste texto. Quebrei o silêncio porque a angústia que ele causa invade o subconsciente feito espeto quente no hipotálamo. Mas pouco antes disso, folheava um exemplar da biblioteca pública (Oliver Sacks), onde se lia que todos os seres humanos são idênticos organicamente, fisicamente, enquanto que - considerando-se suas histórias - são únicos em suas narrativas internas. Cada qual com suas verdades. O subconsciente se constrói de narrativas. O papel da memória foi subjugada pela mitificação dela pela imaginação. O ser humano não desistiu. Ainda.

      Mas difícil dar ouvidos ao silêncio. E diante desse Abismo Poente de Whisner Fraga, meu caro, não tem jeito. Tentei ler no parque, molhando a bunda na grama, olhando pais trintões e quarentões balançando a pança pros filhos. Impossível, nem as folhas das árvores ficam quietas perante o abismo que nos rodeia. São as primeiras a pronunciar suas profecias. Tentei caminhar com o volume do Fraga enquanto lia atrapalhadamente as narrativas do livro, mas meu inconsciente parecia entorpecido de buzinas e petit pavês, de propaganda de margarina e calçamento irregular. Finalmente, sentei no sofá do meu quarto, escolhi uma posição confortável, deixei um som rolando - Emerson, Lake & Palmer, depois Peter Townsend, depois Ennio Moriconi e Phillip Glass, passando por Uakti, Schumann e Grieg, no fim, mantendo a coerência espiritual, ouvindo Slayer, Anthrax, Sepultura, Metallica, Lamb of God, mas a leitura se atrapalhou a mente ficou negra bloqueada, então, desacelerei com The Hellacopters e The Black Label Society. Quando percebi o abismo havia me expulsado. Acendi um cigarro, com o livro deitado nas coxas.

      Então, percebi. Anulei todos os meus sentidos. Apaguei minha memória. Deixei minha mente afundar nela mesma, pois é isso que as narrativas de Abismo Poente exigem. Whisner Fraga exige silêncio absoluto. A mente precisa estar branca e rasa, não aquietada de tudo, pois o que resulta da leitura de cada uma das pequenas pérolas de Fraga é a combustão reflexiva e imaginativa, fazendo pequenas áreas empoeiradas do cérebro acordarem e pulsarem freneticamente. Como mantras elaborados com talento humano, mundano, para o asceta preparado para a iluminação, os textos de Abismo Poente não são para qualquer otário.

      Abismo Poente nos apresenta nove pérolas raras, não daquelas branquinhas, redondinhas, perfeitas para preliminares anais. Não. Nove pérolas negras, repletas de nuances, com um ou outro tom quase imperceptível, escondidos entre fendas arquitetonicamente planejadas, que exigem um observador atento e levemente esquizofrênico, algo raro em nosso asséptico mundo de leitores, pois o excesso de racionalismo frente a esse livro só pode resultar em idiotismos, clichês e babaquice acadêmica de professor de colégio. Abismo Poente exige silêncio absoluto. Exige uma mente preparada, astuta e cheia de vícios. Pois nenhum leitor é igual, as narrativas pessoais, internas, são apenas dele, impossível prever o resultado frente ao que Fraga preparou. Por isso, anular os vícios é impossível. Abismo Poente não se destina aos porcos, mas aos ascetas cada vez mais raros no turbilhão de vozes em que estamos injetados. Não é livro para qualquer um. Desse encontro nada é previsível, nada é dedutível e escalonável. Abismo Poente é uma surpresa na literatura atual. Por sorte, de tempos em tempos algo assim surge para nos transportar para dentro de nós mesmos, nos tirando desse marasmo pegajoso e etiquetado.

      Mas nem pensar em ler Abismo Poente de uma sentada, tenha respeito. Whisner Fraga não escreveu narrativas como quem escreve anúncios de barras de cereal, ou como quem escreve daqueles continhos feitos à base de manuais (ou, com todo respeito aos quais admiro, fruto de oficinas pasteurizadas). Não mesmo. Whisner deve ser lido a conta gotas, assim: sente-se confortavelmente, silencie, leia sem apego nem desapego, sem ânimo nem desânimo, a narrativa escolhida por inteiro (a escolher; de preferência não siga a ordem da edição); depois, dê um tempo, mesmo que para ler algum enlatado, mas retorne ao Abismo Poente o mais rápido possível, antes que ele se ponha por completo. Definitivamente. Pois ser leitor não é pra qualquer um.



Abismo poente


Leia o livro: ABISMO POENTE