![]() ![]() Entrevista conduzida por Laura Capriglione Admirador dos Mamonas Assassinas, o poeta explica que é necessário defender a língua portuguesa, inclusive usando termos chulos com critério. ![]() Às vésperas de completar 70 anos de vida e cinqüenta de carreira literária, o poeta, tradutor e ensaísta José Paulo Paes anda cada vez mais incomodado com o que chama de aviltamento da língua portuguesa. Para ele, basta acompanhar a conversa de dois adolescentes para reparar que se trata de um diálogo exclamativo, entrecortado, sem fluência, próprio de quem apenas reafirma um comportamento de grupo. "É a uniformização da sociedade de consumo, que dispensa a troca de experiências e também torna dispensável a língua", diz, retratando um fenômeno que hoje se verifica na maioria dos países. José Paulo Paes é admirador sincero dos Mamonas Assassinas, que considera "a última prova de vida inteligente no rock brasileiro". Quanto aos palavrões que acompanhavam as músicas do grupo, o poeta explica: "Falar palavrão é coisa séria, muito mais séria do que se imagina, e eles sabiam quando fazer isso". Casado há mais de quarenta anos com Dora, que conheceu como primeira-bailarina do Municipal de São Paulo, Paes é dono de um senso de humor tão afiado que mesmo a amputação da perna esquerda, há dez anos, não lhe tirou a graça e a ironia - em homenagem ao membro extirpado, compôs Ode à Minha Perna Esquerda. Técnico em química e intelectual autodidata, já publicou 27 livros de poesia e mais de 100 traduções. A partir de junho, programou o lançamento quatro obras destinadas ao público infantil. Começa com um livro de poemas chamado O Passarinho Me Contou. Segue-se uma espécie de autobiografia com o modesto nome de Quem, Eu? Também está traduzindo poemas de Lewis Carroll, o criador de Alice no País das Maravilhas, e prepara uma coletânea de autores nacionais. Para os adultos, irá publicar um livro chamado A Gaveta do Tradutor, em que promete "esvaziar as gavetas, num sentido de miscelânea mesmo" Serão poemas traduzidos de seis línguas - latim, grego moderno, inglês, alemão, italiano e holandês. Prepara ainda um coletânea de sua própria produção chamada Melhores Poemas. Na semana passada, ele interrompeu seus trabalhos para dar a seguinte entrevista a VEJA: PAES — O tradutor luta pela afirmação da sua língua. Na conversação e na escrita, tem havido uma corrupção séria, um aviltamento do idioma português. Quando se fala em computadores, em tecnologia, é natural que ocorra uma preponderância do inglês, e isso não me preocupa. Mas o descaso com relação à nossa própria língua, sim. Para mim, a identidade nacional é fundamentalmente a língua. Aviltar uma é aviltar a outra. ![]() VEJA — Como isso acontece? PAES — Tome-se uma conversa entre adolescentes. É entrecortada, cheia de exclamações. Não há fluência de expressão, e eles aparecem não ter capacidade de expressar um pensamento completo. Esses jovens não trocam experiências, apenas reafirmam comportamentos e atitudes que já são conhecidas por todo o grupo. É a uniformização da sociedade de consumo, que dispensa a troca de experiências e que também torna dispensável a língua. Tal situação se agrava porque o ensino é ruim e eles não lêem. ![]() VEJA — Qual poderia ser o papel da escola na defesa da língua? PAES — Até hoje sou grato ao meu professor de português do ginásio, Júlio Ridolfo. Ele tinha um método que julgo infalível. Na primeira aula, explicava gramática. Na segunda, obrigava os alunos a escrever composições em classe. Na terceira, selecionava alguns textos e comentava-os com a turma. Depois, repetia esse ciclo. Findos os quatro anos de ginásio, eu já sabia organizar as idéias, expô-las com coerência e clareza. Mas isso é passado. Hoje em dia, o professor ganha salários miseráveis, a sociedade tem um descaso criminoso com isso e o governo finge que não tem nada a ver com essa situação. ![]() VEJA — A influência de outro idioma pode ser benéfica? PAES — O conhecimento de pelo menos uma segunda língua é muito importante. Aumenta o repertório de uma pessoa, sua capacidade de ver o mundo, amplia o entendimento do outro. Mas é preciso primeiro ter o domínio da própria língua. O sujeito que não consegue se expressar bem no seu idioma tem duas alternativas: ou não consegue se expressar bem em nenhum outro, ou, se consegue se expressar bem na outra língua, perde sua raiz e se torna um ex-brasileiro. Por isso, fico preocupado com essa mania de colocar crianças que ainda não sabem português para estudar inglês, por exemplo. É um absurdo. Trata-se de um puro reflexo da síndrome de mazombismo que acomete toda a formação cultural do Brasil. ![]() VEJA — Síndrome de mazombismo, o que é isso? PAES — É um termo que o grande Gregório de Mattos usava para zombar do mazombo, aquele sujeito que, nascido no Brasil, sofria de nostalgia por não ser europeu. À sua época, Joaquim Nabuco costumava falar que o brasileiro lia o que a França produzia e era, por inteligência e pelo espírito, como um cidadão francês: via tudo como podia ver um parisiense desterrado de Paris. Veja só: estávamos no século XIX e já era assim. É igual ao que se passa hoje, com a diferença de que se trocou Paris por Miami, saiu o francês e veio o inglês. Outra novidade é a catilinária da globalização, que é o álibi que faltava para converter a patologia do mazombismo em virtude cívica. Toda vez que fico sabendo de alguém que resolveu educar os filhos em inglês antes do português me vem uma sugestão: entreguem-nos para adoção por um casal americano. Fica mais barato e é mais expedito. ![]() VEJA — Um dos argumentos para aprender uma segunda língua bem cedo é que a pessoa poderá conversar sem sotaque... PAES — Tenho um amigo italiano que tem um sotaque fortíssimo e se explica assim: "Por que vou falar tão bem uma língua estrangeira? Eu não quero ser espião". Ele diz mais: que falar língua sem sotaque é falta de caráter. Eu concordo. O sotaque é uma coisa adorável, pois guarda o passado de uma pessoa, sua história. E também pode ter seu charme. Quem, entre os homens de minha idade, não se encantava com a atriz de televisão que tinha sotaque francês arrastado e delicioso? O cidadão que enche a boca para falar de Primeiro Mundo é o mais Terceiro Mundo que existe. Não existe esse negócio de Primeiro Mundo. A imbecilidade também está no chamado Primeiro Mundo, a grosseria também está lá. ![]() VEJA — Mas não é bom que as pessoas possam ler livros, escutar música e entender as letras em outro idioma? PAES — Na realidade, o que me perturba é que o mundo de hoje está muito burro. Nós temos uma oferta de bens culturais que seria inimaginável para os nossos antepassados e, entretanto, pouco se usufruem desses bens. Eu acho uma graça essas pessoas que lêem o New York Times, o Time de Londres. Para quê? No fundo, é o mesmo jornal que se pode ler aqui. O chato é que os jornais brasileiros ficaram parecidos demais entre si. O que diferencia um do outro é o nome da enciclopédia que eles vendem. Já foi diferente. Você pega o Nelson Rodrigues e mesmo o Assis Chateaubriand, com toda a pulhice dele, são pessoas que deixaram uma marca. Eu, de uns tempos para cá, reivindico o direito à desinformação. Não perco meu tempo com coisas de que não gosto. Se eu posso aprender sobre a guerra lendo a Ilíada, por que vou perder meu tempo com a Guerra do Golfo? Em geral, faço minha a frase de Valéry que diz: "Os acontecimentos me aborrecem". De que vale perder horas por dia para ler coisas que não vão valer nada amanhã? ![]() VEJA — O senhor não está sendo muito pessimista? PAES — O sonho iluminista se frustrou. Acabou a idéia de que a instrução universal seria fundamental porque no momento em que todas as pessoas pudessem ler, escrever e se informar automaticamente se transformariam em cidadãos plenos e conscientes. O que aconteceu foi uma industrialização do lazer. Oferece-se aquilo que todos gostam. E o que todos gostam tem gosto de nada. O domínio da cultura é o domínio da diferença. O que existe é a uniformidade, a despersonalização. Isso é tão forte que até a publicidade identificou o fenômeno e inventou os tais "serviços personalizados". Há tanta uniformidade que virou slogan publicitário — falso, é claro. ![]() VEJA — Mas não houve uma democratização da cultura; já antes, apenas os ricos e os bem-educados tinham acesso aos bens culturais. PAES — A vida social antigamente era mais intensa, mais rica. As relações humanas eram mais legítimas. Hoje estamos na época das multidões solitárias. Cada um trancado em seu apartamento. O sujeito mora 40 anos no bairro e não conhece o vizinho. Sem essas experiências pessoais, tudo o que sobrou é o que entra pela televisão, que é imposto pela indústria. São as contradições da cultura capitalista: ela prega o individualismo, defende o individualismo, mas precisa da massificação para tocar seu projeto produtivo. ![]() VEJA — O senhor já traduziu textos do inglês, francês, italiano, grego moderno, grego clássico, alemão, e agora está entrando para o holandês. Como se faz para aprender tantas línguas? PAES — Primeiro vamos esclarecer que eu sou quase surdo-mudo em várias línguas. Francês e inglês, só falo gaguejando. Em grego, sou capaz de emitir uma ou outra frase. Em alemão, sou absolutamente mudo e parcialmente surdo - de vez em quando consigo entender uma ou outra frase. É lógico que em viagens consigo me virar. A minha familiaridade com esses idiomas é no texto escrito. ![]() VEJA — Por que o senhor resolveu estudar uma língua como o grego? PAES — Eu sempre quis ir à Grécia, desde meus tempos de ginásio. Até costumo dizer que o turismo é o serviço militar da idade madura. É obrigatório. Achei, no entanto, que seria falta de respeito chegar lá sem saber dizer sequer "bom-dia", "boa-tarde". "por favor", "obrigado". Pedi a um amigo que morava em Nova York que me mandasse um desses cursos de línguas com fitas para grego. Durante quatro meses passei duas horas por dia ouvindo as gravações. Quando, enfim, cheguei à Grécia, o carregador de malas se aproximou e, confiante, pedi em grego para ele pegar as valises. Tudo pareceu bem até que ele respondeu. Entrei em desespero. Descobri que falava bem, mas não entendia nada do que me diziam, pois em outra velocidade, muito mais rápida. Passei vinte dias sem quase entender nada. Mas foi um período de encantamento. ![]() VEJA — Mas qual a vantagem de entender grego quando se sai da Grécia? PAES — Parece estranho, mas com a língua grega você sente o chamado terra-a-terra. Eu tinha saído de um Brasil onde se discutia a mais não poder o conceito de sintagma. Era um blablablá ensurdecedor sobre isso. Foi uma delícia o dia em que pus os pés — literalmente — no Sintagma. Para os gregos, é só a praça central de Atenas. Aconteceu a mesma coisa com as metáforas. Tanta discussão sobre elas e, na Grécia, é só um meio de transporte. Todos os ônibus, em grego, são "metáforas". Também o Exodo, que para nós tem aquela carga dramática da expulsão dos judeus, é só a "saída" do banco ou do metrô. Eu, que já estava muito animado com isso, comprei então uma edição bilíngüe do poeta Kaváfis — em grego e italiano. Voltei ao Brasil e passei um ano com muito dicionário e uma gramática descobrindo os sentidos de cada palavra. Nos momentos mais árduos, cotejava com o italiano. Arrumei uma professora de grego e aí começaram as primeiras tentativas de tradução. Acabei traduzindo metade dos 154 poemas que Kaváfis deixou. ![]() VEJA — Então é sempre melhor conhecer a obra de um autor na sua língua original? PAES — De jeito nenhum. Existe uma má vontade com nossos tradutores que, na realidade, é um reflexo de nossa síndrome de mazombo. As traduções são importantes mesmo para quem tenha aprendido outra língua tão cedo. Agora mesmo, estou traduzindo poemas de Edward Lear e Lewis Carroll (Rimas do País das Maravilhas) para crianças. Uma coisa é ler Lewis Carroll em inglês e outra bem diferente é lê-lo em português. A tradução é a transposição de um universo a outro. Um outro Lewis Carroll surge. Quando se lê o Lewis Carroll em inglês, descobre-se a riqueza de possibilidades poéticas da língua inglesa. A boa tradução não é aquela que você lê como se tivesse sido escrita originariamente em português. É aquela em que o português tem algo de estranho. Aí você conseguiu infundir um pouco do original na sua própria língua, ampliando-a. ![]() VEJA — E como está a qualidade das traduções feitas no Brasil? PAES — Não há dúvida de que melhoraram. O importante é que se saiba quanto as traduções foram fundamentais para a cultura, a começar pela Bíblia, que não chegou até nós na versão original. O grego, versão pela qual o Novo Testamento chegou até nós, não era a língua nem de Jesus nem de seus discípulos. ![]() VEJA — Qual a função a poesia para o público infantil? PAES — Não se deve atribuir funções à poesia. Ela existe e basta, como a vida existe e basta. Esse é, aliás, o encanto da poesia. É uma coisa absolutamente inútil. Tanto quanto um passarinho, uma borboleta. Mas a poesia ajuda a fruir a vida. Já se disse que o poeta deve ser o mundo como se tivesse acabado de nascer. Deve ver o mundo como uma perene novidade, entender que as coisas nunca envelhecem, o que envelhece é o olhar sobre as coisas. As crianças entendem com mais facilidade isso, porque tudo para eles é naturalmente uma novidade. ![]() VEJA — Não é mais difícil para a criança entender os jogos de palavras das poesias? PAES — A poesia é uma linguagem muito mais condensada, que exige muita concentração e atenção. Você tem de ir educando a criança para os aspectos lúdicos e musicais da língua, algo a que ela está naturalmente aberta. Esse contato precoce com a poesia pode despertar a sensibilidade da criança para esse sortilégio de ritmo e da música das palavras. ![]() VEJA — Mas é possível ensinar a poesia a crianças que adoram os Mamonas Assassinas? PAES — Sei que muita gente irá se espantar com isso, mas, na minha opinião, a morte dos Mamonas Assassinas foi uma perda irreparável. Eles foram o último sinal de vida inteligente no rock brasileiro. Eram uns garotos adoráveis. Era uma delícia aquela alegria, a capacidade de satirizar a música sertaneja, os filmes de televisão, com o Robocop Gay, as tamancadas do Roberto Leal. Eles eram de uma vitalidade incomparável, uma suplesse. ![]() VEJA — E os palavrões? PAES — Os Mamonas eram criadores e sua criação ia muito além do uso puro e simples dos palavrões. Nesse caso, é um recurso legítimo. Quando o palavrão é usado gratuitamente acaba sendo degradado. Numa conversa, quando se usa o mesmo palavrão dez vezes, repetindo-o em cada frase, como para marcar o ritmo, aí não tem sentido. O palavrão deve ser respeitado, porque é coisa muito séria. Deve ser usado como exclamação de um sentimento muito forte de injúria. Para mim, usar um palavrão fora de hora é como marido e mulher irem a um motel. É falta de respeito com o motel. O motel foi feito para os amores clandestinos. Fazer amor legal no motel? Ora, faça-me o favor. ![]() VEJA — Só para entender: o senhor coloca Mamonas no mesmo patamar que Chico Buarque ou Cole Porter? PAES — É a chamada cultura do entretenimento. Chico Buarque e os Mamonas estão nessa categoria. Cole Porter pode ser um pouquinho acima da média. É assim mesmo. Se o Giberto Mendes, um grande músico erudito que quase ninguém conhece, tivesse a mesma popularidade que Caetano Veloso tem, este país seria uma outra coisa. Isso não vai existir nunca, nem em lugar nenhum, graças a Deus. Porque aí acabaria o privilégio de gostar de algo para poucos. É como conhecer um restaurante com uma comida excelente, baratinha, e que nunca está cheio. Você passa isso para uns poucos amigos, que mereçam. Se você contar para todo mundo, o lugar enche, o preço da comida sobe e ela fica ruim. ![]() VEJA — É esse gosto pelo exclusivo que faz o senhor se dedicar à poesia? PAES — É algo contraditório. Todo escritor sofre da nostalgia do público. O objetivo não pode ser a popularidade nem ganhar dinheiro, mas, se ninguém ler o que se produz, para que escrever? Um livro meu, hoje, vende 3. 000 exemplares em cinco ou seis anos. Agora, está chegando às livrarias — a poucas livrarias — um livro chamado A Meu Esmo. É uma edição artesanal, 250 exemplares apenas. Eu acho que a poesia é como o veneno, deve ser dada em pequenas doses. Se for demais, mata.
Gentilmente cedida por Mário Sérgio Conti - Diretor de Redação ![]() |
Destaques desta entrevista: Língua Adolescentes Escola Mazombismo Globalização Imbecilidade Mundo Burro Uniforrmidade Individualismo Tradução Grego Poesia Mamonas Assassinas Palavrões |