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(Parte Final)
Entrevista conduzida por Carlos Felipe Moisés
— Você, Zé, morreria se fosse impedido de escrever?
— Não, claro que não. Eu só morreria se não me deixassem comer. Agora, a verdade é que se eu não pudesse escrever meus poemas, meus ensaios, minha vida perderia talvez aquilo que possa justificá-la, não aos olhos dos outros, mas aos meus próprios. Há um poeta que aprecio muito, Paul Eluard, que gostava de usar a expressão "razão de viver". É frequente na sua poesia isso que me parece bem francês, bem do cartesianismo francês, de procurar a razão das coisas. "Raison de vivre"... Eu hoje tenho na literatura, no exercício da criação literária, a minha razão de viver. Minha geração, que é coletânea da voga existencialista, sempre se preocupou muito com a questão do absurdo da existência e sempre achou que a empresa do homem era tentar achar uma justificativa, uma razão de ser, para contrapor a esse absurdo. Aquela coisa do mito de Sísifo, de arrastar o rochedo lá para cima, e ele vindo para baixo... A literatura, para mim, é uma das formas mais elevadas de dar sentido à vida, de lutar contra o absurdo existencial.
Digo a José Paulo que para os de minha geração, no tocante a isso, o quadro não mudou. Observo que sua colocação responde implicitamente à pergunta "por que escrever?", mas como fica a outra pergunta, paralela, "para quem escrever?"
— No caso brasileiro, especificamente, existe uma espécie de autofagia: os poetas mais jovens lêem os poetas mais velhos, que por sua vez vêem naqueles o seu público de eleição. Acho isso um caso de patologia literária. Qualquer poeta que se preze sempre aspirará a ter como leitor o não-poeta, alguém que ele possa trazer para o mundo da poesia, integrando esse mundo no espaço da vida cotidiana.
Em seguida, ele confessa não ser um leitor entusiasmado de poesia, prefere ler prosa de ficção, gênero que reconhece uma função pedagógica, de educação sentimental, que não é cumprida pela poesia.
— O que a poesia faz, isto sim, é exercer uma pedagogia da linguagem, para mostrar o que fica depois que a linguagem é depurada de todos os excessos, todas as traições. Aquela concepção do Eliot, de que o poeta deve zelar pela preservação da língua, para curá-la dos males que a enfermam, sobretudo, nos tempos modernos, a propaganda, tem uma função pedagógica exemplar, porque ensina às pessoas o que é a sua essencialidade. A poesia é a linguagem ultrapurificada, aquela tonelada de minério que, depois de processada, dá uma quantidade mínima, mas extremamente poderosa, de radium. A poesia visa a obtenção desse radium.
Insisto na questão da poesia que se alimenta da poesia, que está longe de ser um fenômeno brasileiro, mas universal, e proponho focalizá-la do ângulo do criador, não do consumidor. Explico-lhe meu ponto de vista.
— Parece que o poeta moderno está condenado a produzir a partir de estímulos fornecidos por outros poemas ou obras de arte em geral. Daí a tendência a se fechar no espaço rarefeito da própria arte. A sua poesia em particular, Zé, me parece livre desse perigo, pois nela é muito forte a presença do cotidiano, com fonte de temas e estímulos. De um lado, você tem a possível atemporalidade da arte, de outro, a banalidade do dia-a-dia, historicamente marcada - o "eterno" e o "efêmero". Na sua poesia como se dá o diálogo entre um e outro?
— No que você diz há muita coisa bem observada. Isso se pode notar na poesia mais recente, em que a preocupação metalingüística é uma constante: poesia falando de poesia. Tenho a impressão de que isso advém do isolamento do poeta em relação a um público mais amplo. O poeta moderno não tem público, então sua tendência é se refugiar, não na torre de marfim, mas na sua oficina de relojoeiro, e o perigo é que se preocupar só com as molas do relógio e não com as horas que ele marque, esquecendo-se de que o relógio existe para marcar horas e não para fazer tique-taque.
— E na sua poesia, Zé, como é que você vê essa coisa na própria poesia?
— Na minha poesia, é claro, aparecem essas notas metapoéticas, mas, como você diz, ela se volta para o exterior, as mais das vezes para o cotidiano. Isto porque sempre achei que o isolamento do poeta é patológico, é danoso à sua arte, tão ou mais danoso que a glorificação despropositada. No primeiro caso, ele se transforma numa espécie de lobisomem, a fugir das pessoas; no outro, numa espécie de de vedete, que aceita fazer os rebolados mais ridículos para obter aplausos. Mas tenho a impressão de que, no íntimo de cada poeta, existe a nostalgia do leitor. Aí está Baudelaire, que não me deixa mentir: "hypocrite lecteur, mon semblable, mon frère", e todos nós queremos esse leitor "hipócrita". De modo que eu sempre tive em mente o leitor e procurei, na medida do possível, chegar a um grau, não digo de clareza, mas de acessibilidade que pudesse atrair para a poesia o leitor não-poeta.
Sinto que, movido pela modéstia, José Paulo está desconversando. Digo-lhe aquilo que julgo estar implícito no seu pensamento, que ele deseja, sim, comunicar-se com o leitor, mas não o bajula, não faz qualquer concessão a respeito. Além disso, sua poesia lança mão de certos expedientes ( a extrema concisão, às vezes próxima do hermetismo, a objetividade, a impessoalidade, a aparente frieza racional) que podem dificultar o acesso do leitor. E, a propósito desses expedientes, pergunto-lhe se elas não guardam alguma afinidade com a sua anterior ocupação de químico.
— Creio que não. A química representou apenas uma fase da minha vida. Na infância eu gostava muito de ler ficção científica, lembro-me ainda do Suplemento juvenil, de que cheguei a ter o primeiro número: Flash Gordon, Buck Rogers... De modo que esse mundo da ciência química, para mim, se ligava ao mundo da feitiçaria, da magia, era um mundo que sempre se fascinou. E no fundo da casa eu tinha um laboratório com meus vidrinhos, meus reagentes, uma verdadeira paixão pela química.
— Talvez sua vocação não fosse a química, mas a alquimia. Daí para a poesia...
— É, pode ser... A verdade é que aquela fase como químico de profissão foi uma época muito feliz da minha vida. Eu estava fazendo alguma coisa que não tinha nada a ver com literatura. Eu continuava a fazer poesia, já tinha publicado, mas o mundo da química era uma coisa e o da poesia, outra. Eu tinha despoetizado a química, que era uma atividade prática, de sobrevivência, enquanto a poesia era a minha cachacinha, minha pintura de domingo, minha mania. Eu já tinha chegado à idade da razão e não misturava as coisas.
— Será que na alquimia dos poemas essas coisas não acabaram por se misturar?
— Bem, talvez a química tenha deixado algum sinal, neste meu gosto de objetividade, do impessoalismo. Mas isso também tem que ver com o temperamento. Sempre fui um pouco avesso à sentimentalidade, à exteriorização excessiva dos sentimentos, sempre fui mais pela discrição, pela autocrítica, a compostura. Tudo isso levado pelo respeito aos outros, para você não colocar os outros a reboque de seus interesses. Talvez tenha sido isso e está ligado à timidez meridiana da minha personalidade.
Olho o relógio e fico preocupado. Estamos conversando há quase três horas... Mas vejo um Zé Paulo à vontade, sinceramente empenhado na conversa, que flui sem obstáculos, e parece que indiferente ao tempo que passa. Enquanto procuro esquecer o relógio a conversa muda de rumo. Digo-lhe que os futuros leitores da entrevista, tendo chegado a este ponto, estarão pensando que ele é um superintelectual, que vive e respira literatura vinte e quatro horas por dia, alheio ao que se passa em outras esferas. Ele então fala do seu cotidiano, da casa, das andanças não-intelectuais. Diz que é um grande consumidor de filmes, pela televisão. Como não sai de casa ("Não gosto de sair, sou um animal doméstico, um pequeno burguês convicto e caseiro"), recebeu de muito bom grado o advento do vídeocassete.
— Adoro filme de terror. Acho Vincent Price o Vicente Celestino do filme de terror, o que para mim, é um alto elogio. Gosto muito de filme policial, mas não gosto de filme de cowboy. Acho filme de espionagem muito besta, muito ideológico, maniqueísta. Mas filme de aventura... Capa e espada, por exemplo, filme de pirata... Sou vidrado em filme de pirata.
Daí ele emendou para literatura de consumo, dizendo-se fã irrestrito das velhas coleções "Terramarear" e "Paratodos". E foi desfiando o que considera o seu "gosto literário irremediavelmente pervertido": Ponson du Terrail, Alexandre Dumas e tantos outros autores "menores", lidos na infância e na adolescência.
— Foi neles que fiz minha iniciação literária e jamais se me apagou da lembrança e da sensibilidade a marca deixada por essas leituras. Hoje, essas reminiscências juvenis começam a aparecer até na minha poesia. Outro dia, por exemplo, fazendo um poema sobre Paris, não pude deixar de me lembrar do Corcunda de Notre-Dame — do filme com o Charles Laughton e do romance de Victor Hugo.
— Se entendo bem, Zé, você está sugerindo que uma literatura não pode ser constituída somente de gênios e de obras-primas?
— Sem dúvida! Acho inclusive que uma das provas da fraqueza da nossa literatura, enquanto sistema, está na falta, entre nós desse tipo de literatura despretensiosa, de mero entretenimento. Nossos autores só aspiram à imortalidade, só escrevem com olhos voltados para a Academia ou a posteridade. Eu me lembro de uma das cartas de Monteiro Lobato, em que ele, falando da sua estréia, dizia: "Ou arrebento ou nada!". Já nos países onde há um grande público leitor, há também um espaço para o escritor mediano que produz esse tipo de literatura como recreação, sem compromisso, extremamente importante, no sentido de criar um público que depois pode chegar à grande literatura. Uma de nossas falhas é não dispormos, em larga escala, desse tipo de produção literária, o que parece corresponder, simetricamente, à inexistência entre nós, até há pouco tempo, de uma classe média digna do nome.
Literatura como entretenimento ou como investigação do sentido último da existência; o tempo desfrutado e perdido (perdido?) com passatempos banais ou avidamente aproveitando no esforço de criar — José Paulo fala da alegria com que vem-se empenhando em múltiplas tarefas literárias, desde que se aposentou. O sonho antigo, da literatura em tempo integral, vai-se realizando aos poucos.
— Acho que a gente precisa ser fiel, de algum modo, à infância e à juventude. Se você tem algum sonho, na infância ou na juventude, por que não lutar a vida inteira para chegar a realizá-lo, no todo ou em parte? E nós, poetas e escritores, temos um privilégio enorme que é, mesmo depois de aposentados, podermos seguir levando a cabo nossa atividade, sem sair de casa.
Enquanto saboreamos o segundo cafezinho, trazido por Dora, Zé Paulo continua a falar do tempo de expectativa que antecedeu a aposentadoria. "Hoje, finalmente estou cuidando do meu jardim, como Voltaire recomendava em Candide". Digo-lhe que sua poesia, com a idade, vai se tornando cada vez mais jovem, quer dizer, mais vibrátil, mais enérgica, mais ágil. Pergunto-lhe se ele concorda.
— Embora a modéstia me impeça de concordar entusiasticamente, eu discretamente concordo. A poesia, vamos dizer assim, está tão dentro da gente que faz parte dos nossos músculos, de nosso sangue, com uma vantagem: os músculos, com a idade, vão-se tornando mais flácidos, de modo que a poesia, nesse momento, pode até exercer uma ação compensatória. Principalmente se você cuidou, durante a vida, de manter um pouquinho do menino e do jovem, que você foi, vivos dentro de você. Isso nos dá o privilégio de envelhecermos na obra do que na vida, provando mais uma vez o acerto da frase final do Tristram Shandy, em que o narrador dizia ser muito feliz porque podia viver duas vidas: a do personagem e a dele próprio, narrador.
Não sei que associação me leva, nesse instante, a lhe perguntar se algum dos seus livros é o seu predileto. Ele diz que não, nenhum. Predileto é o próximo, o que está por nascer. Observo que seu livro mais recente*, Calendário Perplexo (1983), mostra uma vontade de organização, de arranjo sistemático, aquilo que João Cabral chama de "livro vertebrado", que não se nota nos demais. Pergunto se este é o rumo que vem tomando sua poesia.
— É, minha tendência, hoje, é mais para o livro vertebrado. Estou trabalhando agora no próximo livro, que já está adiantado (já tem nome: A poesia está morta mas juro que não fui eu**) e vai-se compor de quatro séries básicas de poemas. A primeira — a gente tem que pagar o tributo à moda — será de poemas sobre poesia, um deles aliás, que se chama "Acima de qualquer suspeita", tem esse verso que dá título ao livro; há uma outra série, "Geográfica pessoal", onde estão minhas impressões de viagem, destiladas alquimicamente em pequenos epigramas; há uma outra série que se chama "Des-histórias", flagrantes históricos vistos sempre de um ângulo crítico, irônico; e finalmente uma série já praticamente pronta, o "Livro dos provérbios", brincadeiras poéticas modificando provérbios já existentes ou criando outros.
Não consigo evitar o relógio: quase seis horas da tarde. Digo a Zé Paulo que fazer entrevistas assim, graças a ele, é muito mais fácil do que eu pensava. Conto-lhe das minhas indecisões de entrevistador de primeira viagem e ele me consola dizendo-se marinheiro de primeira entrevista - pelo menos nunca tinha concedido alguma que fosse além de vinte ou trinta minutos. Concluímos então que é preciso colocar um fecho nisso. E não me ocorre nada melhor do que forçar um pouco José Paulo Paes a se dirigir expressamente aos mais jovens, ainda que à custa de uma pergunta banal:
— Se algum jovem candidato a escritor o procurasse, em busca de conselhos, você lhe diria o quê?
— Diria que ninguém precisa de conselho, que todo mundo sabe errar sozinho... em princípio. Depois diria que ele precisa assumir a poesia como um risco, fazer o melhor que possa e sair a campo sozinho, sem muletas de gente que ele suponha mais experiente. Porque essas muletas são, as mais das vezes, desfiguradoras e desestimulantes, o sujeito acaba perdendo a capacidade de andar sozinho. A prática da literatura é um risco que o sujeito tem que assumir como único responsável. A única forma de conselho e aprendizagem a que ele deve recorrer é a dos livros. Todo jovem tem certos poetas a quem admire; ele que procure comparar o que faz ao que esses poetas fizeram. Numa primeira fase, não vejo saída senão a imitação; no começo, você tem que procurar os poetas mais afins do seu temperamento e tomá-los como horizonte de referência para o seu aperfeiçoamento, seu trabalho de limpeza do texto. E há uma segunda fase em que você deve livrar-se da sombra, da tutela esmagadora desses mestres. E deve, tanto quanto possível, evitar as influências pessoais, diretas, de amizade... De amizade não, a amizade é muito fecunda, é muito bom você poder discutir com o mesmo ofício, da mesma geração, suas perplexidades, sonhos, ambições. Mas não deve se deixar esmagar nem se deixar esmagar nem se deixar atrelar pela personalidade de algum amigo talvez mais experiente ou mais sábio. Se você precisar de mestres, vá procurá-los nos livros: são mestres mudos e não chateiam a gente.
Gravador desligado, missão cumprida. Vou recolhendo a parafernália que havia espalhado pelo escritório e me preparo para sair, mas José Paulo insiste e seguimos proseando. Meia hora depois, por fim me despeço. O relógio marca 6:45. Roubei quase cinco horas do tempo de José Paulo Paes. Não fosse minha intromissão e ele já teria concluído a tradução do poema de Eluard; ou encontrado a palavra exata para aquele seu poema ainda em estado de oficina; ou anotado uma intuição subilina sobre a poesia goliárdica... Resta o consolo de que o tempo subtraído ao escritor acabou por se transformar neste depoimento, agora entregue a seus leitores habituais — e muitos, muitos outros que José Paulo merece conquistar.
Entrevista com José Paulo Paes - A poesia e a vida na obra de José Paulo Paes, Jornal da Tarde, São Paulo, 19/7/1986. Publicada em Literatura para quê?, Coleção Ensaios, Letras Contemporâneas, 1996.
Carlos Felipe Moisés nasceu em São Paulo em 1942. Autor de Poemas reunidos,
Prêmio APCA, 1974, e de Subsolo, Prêmio APCA, 1988, ambos de poemas.
Em 1996, publicou Poesia não é difícil: introdução à análise do texto poético
e Literatura para quê? ,que reúne seus últimos ensaios. Foi professor de teoria literária na USP e também trabalhou na Universidade da Califórnia, em Berkeley (EUA).
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Destaques desta entrevista:
Por que escrever?
O relógio
Leitor não-poeta
Gênios e Entretenimento
Conselhos ao Jovem Poeta
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